Terra de Ninguém - Borderlands Warfare



Figura 1 - "Terra de ninguém" entre trincheiras na Primeira Grande Guerra



    A Raia são os 1214 Km de fronteira entre Portugal e Espanha. Já vivemos há quase 10 anos na Raia alentejana no Concelho de Alandroal. Este Concelho faz fronteira com a Extremadura Espanhola. Por aqui a fronteira sempre foi o Rio Guadiana que hoje também é o Grande Lago de Alqueva. Realizámos e participámos em várias actividades pela Raia dos dois lados da Fronteira. Fizemos muitos amigos espanhóis e sempre fomos muito bem recebidos no lado espanhol. Mas nem sempre foi assim...... 
    O tema deste post leva-nos para tempos de conflito. Tempos em que "De Espanha, nem bom vento, nem bom casamento". Desde já peço desculpa aos nossos amigos espanhóis de quem tanto gostamos. Mas Espanha sempre foi o grande inimigo de Portugal. Quando vemos a previsão do tempo nos canais espanhóis lá está aquele retângulo que corta o mapa da Península Ibérica. Portugal enquanto nação é mais antiga que a própria Espanha e um dos países mais antigos da Europa. Foi aqui na Raia que se defendeu um território que hoje está infelizmente, na sua maior parte, abandonado. 
    A Raia foi terreno de conflitos constantes desde a Pré-História. Estes conflitos assumiram diferentes formas sendo a mais simples a "Razia" e a mais elaborada a construção de uma "Fronteira Fortificada". A Razia enquanto Guerra Ofensiva e a Fronteira Fortificada enquanto Guerra Defensiva. 
    Como exemplo histórico de Razia na Idade Média deixamos Canto VIII - Estrofe 33 dos Lusiadas de Luis Vaz de Camões. O nosso poeta soldado:
“Na mesma guerra vê, que presas ganha
Est´outro capitão de pouca gente;
Comendadores vence e o gado apanha.
Que levam roubado ousadamente
Outra vez vê que a lança em sangue banha
Deste só por livrar c´o amor ardente
O preso amigo, preso por leal
Pêro Rodrigues é do Landroal!!!”
    Camões glorifica as Razias do Capitão Pêro Rodrigues que era  do nosso Concelho de Alandroal. Este Capitão rouba o gado dos seus inimigos ousadamente. Palavras que descrevem a razia na sua essência. Incursões em terreno inimigo de surpresa e para roubar os seus recursos. Camões refere-se a Pêro Rodrigues como um "Capitão de pouca gente". Parece que na Idade Média já era complicado povoar as terras de fronteira sempre distantes e perigosas. 
    Como exemplo de Fronteira Fortificada temos a construção de Fortificações Abaluartadas ao longo da fronteira entre Portugal e Espanha a partir do século XVII. Uma evolução defensiva que é uma reação à evolução ofensiva da Balística. As armas de fogo tornam-se mais eficazes e a artilharia passa a ter um papel fundamental no sucesso dos conflitos. Portugal fez provavelmente o maior investimento da sua História na construção destas Fortificações Abaluartadas. Na nossa região em apenas 60 Km encontramos vários Castelos Medievais que foram abaluartados: Mourão, Monsaraz, Juromenha, Elvas e Olivença. Encontramos também vários Fortes Abaluartados e Torres de Vigia construídos na mesma época.  Isto representa um colossal investimento para um pequeno País como Portugal.  


Figura 2 - Fortificações Abaluartadas de Monsaraz, Mourão, Juromenha, Olivença e Elvas. No canto superior esquerdo dois dos Fortes Abaluartados que reforçam as defesas de Elvas: Forte de Nossa Senhora da Graça e Forte de Santa Luzia. 


    Este trabalho tem em conta uma área geográfica que abrange vários municípios dos dois lados da fronteira. Do lado português os municípios de Alandroal, Reguengos de Monsaraz e Mourão. Do lado espanhol os municípios Cheles, Alconchel e Vila Nueva del Fresno. E claro, sem querer entrar em polémicas, a  Cidade Franca de Olivença ou Olivenza. Por aqui encontramos uma fronteira milenar que sobreviveu até hoje. Do lado português encontramos várias fortificações e aldeias. Do lado espanhol a situação é diferente pois não existem fortificações e encontramos apenas uma Aldeia. Será que os espanhóis não tinham receio dos portugueses? É provável...... Mas quando olhamos com mais atenção verificamos que as fortificações do "inimigo" foram arrasadas.  Fosse ele islâmico, leonês, castelhano ou espanhol. Usando a estratégia de "terra queimada" criou-se assim uma "zona de tampão" ou "terra de ninguém". Uma estratégia de gerações que acaba por ser mais uma maneira de defender o território. Este Post aborda uma forma de guerra defensiva por vezes esquecida. A terra de ninguém é mais uma evidência de que a Guerra é tão antiga como o Homem. Estes territórios desabitados entre diferentes grupos surgem na nossa região desde a Pré-História. Que continuidade. 
Atenção! Não podemos esquecer a aldeia irredutível do lado espanhol. A Aldeia de Cheles certamente serviu de inspiração a Uderzo e Goscinny na criação dos indomáveis Astérix e Obélix. Esta Aldeia sobreviveu rodeada de povoações e fortificações portuguesas. Temos que descobrir a receita da poção mágica de Cheles.


Figura 3 - A branco  temos a Fronteira entre Espanha e Portugal. O tracejado representa a zona onde o Rio Guadiana faz a fronteira. A amarelo temos a Aldeia espanhola de Cheles. Esta estaria cercada por  dezenas de aldeias e fortificações  portuguesas na Idade Média. Uma pequena nota: temos que ter em conta que algumas destas aldeia não existiriam na Idade Média e que Olivença era portuguesa. Irredutíveis Cheleiros.



    Vamos lá começar pelo princípio.
    Todos os animais têm territórios onde encontram os recursos necessários à sua sobrevivência. Wrangham e Peterson (1996) descrevem a maneira como os nossos "primos" chimpanzés defendem os seus territórios para além da sua fronteira em verdadeiras "razias":
    "Defense of territory is widespread among many species, but the Kesekela were doing more than defending......they move rigth through border zones and penetrated half a mile or more into neighboring land....three times I saw them attack lone neighbors....These are raids. " (p.14). 
    Na maior parte da existência do Homem fomos caçadores recolectores. Pequenos bandos familiares em constante movimento colhendo ou caçando para sobreviver. Mas este era um movimento anual por um território bem conhecido. Este território era ferozmente defendido pois a sobrevivência disso dependia. Ferrill (1989) refere que desde a Pré-História temos uma "terra de ninguém" entre territórios de diferentes comunidades: 
    "Anthropologists have identified some common strategies in prehistoric times. One of them is to interdict use of unoccupied territory to prevent exploitation of its resources by others. Associated with that is the maintenance of the no man’s land between prehistoric communities. Tactics in such a strategy often did not involve full scale battles and consist mainly of raids and terrorism." (p.5). 
    É muito interessante como este autor define que a estratégia da "terra de ninguém" é mantida por táticas de "razias". Este "modus operandi" manteve-se na Raia até à Idade Moderna. 
    Andersen e Rasmussen (1991) trazem-nos um excelente exemplo do Norte da Jutlândia na Dinamarca. Aqui na transição do Mesolítico para o Neolítico encontramos uma "terra de ninguém" entre povoados que apresentam diferentes culturas materiais: 
    "…flint tools from Bjornsholm are generally much more regular and carefully made than at Ertebolle… may reflect the presence of different groups…complete lack of Ertebolle sites in the fiord at Tren A…The trend fiord is located half-way between the Bjornsholm and Ertebolle sites…this area was lying too close to the other settlements…" (p.91). 
    As culturas do Neolítico domesticaram plantas e animais, o que permitiu a sua sedentarização. O território tornou-se ainda mais importante tornando as fronteiras mais estáticas. Keeley (1996) descreve-nos a colonização do território que é hoje a Bélgica por agricultores vindos da zona da Alemanha. Estes colonos criaram uma fronteira com povoados fortificados e uma "terra de ninguém" entre eles e os indígenas: 
    "…The colonization of Germany and the Low Countries by farmers of the Linear Pottery Culture was accompanied by fortified border villages (Figure 9.2) and, in Belgium at least, a 20 to 30 kilometer (12 to 18 miles) no-man’s-land between these defended sites and the settlements of Final Mesolithic foragers (Figure 9.3)." (p.137). 

Figura 4 - Plantas de Keeley (1996, p. 138 e 139) onde podemos observar povoados da cultura neolítica (LBK). Conseguimos ver o avanço territorial deste cultura sob a proteção de fortificações. Observamos também a terra de ninguém entre povoados de cultura Neolítica e Mesolítica.  


    Na Península Ibérica o investigador Manuel Calado (2004) encontra uma "terra de ninguém" no Alentejo Central entre os Concheiros Mesolíticos do Tejo e do Sado. Nesta terra de ninguém existiriam "interações" entre os dois grupos. Deixemos em aberto o tipo de interações e passemos às palavras do autor : 
    " A transitabilidade natural e a contiguidade, garantiam, no entanto, ao Alentejo Central, um estatuto privilegiado na geografia dos concheiros, com incidências mais prováveis na estruturação simbólica das paisagens (Knapp e Ashmore,1999: 8), do que na vida económica; neste aspecto, sendo certo que os mesolíticos exploravam os recursos cinegéticos dos respectivos hinterlands, não parece que os habituais territórios de caça se estendessem, de forma quotidiana, até ao Alentejo Central. Trata-se, desde logo, de um território relativamente equidistante e igualmente acessível, em relação aos dois estuários. Nestes aspectos, a região surge como uma fronteira e, eventualmente, uma espécie de terra de ninguém, entre os territórios do Tejo e do Sado. As diferenças, de várias ordens (Arnaud, 1987), e a própria separação territorial, entre os concheiros do Tejo e do Sado, permitem interpretar o Alentejo Central, antes da instalação dos primeiros povoados, como um palco natural de interações entre os habitantes dos dois estuários. Os grandes penedos naturais das paisagens graníticas alentejanas"(p.175).
    A respeito do Neolítico da Península Ibérica, no Norte Alentejano Raiano  encontramos o trabalho do Professor Jorge de Oliveira (1997):
    "Nas quatro regiões naturais em que claramente se divide a bacia hidrográfica do Rio Sever parecem isolar-se duas "manchas megalíticas" separadas por uma "terra de ninguém". Cinco menires de grandes dimensões implantados sobre a linha de contactos granitos - xistos reforçam esta separação. (....)
Diferentes aspetos distinguem as "manchas megalíticas" parecendo refletir estruturas económicas e sociais distintas que, a serem contemporâneas, foram provavelmente geradoras de focos de conflitualidade que a "terra de ninguém" e o domínio visual dos menires parecem querer confirmar, somados aos vestígios de profundos traumatismos provocados por objetos cortantes e perfurantes detetados nos restos ósseos exumados. Para além da simbologia fálica de todos os menires, eles parecem formar como que uma rede de atalaias delimitadora do território com maiores recursos económicos testemunhados pela monumentalidade arquitectónica, número e riqueza do espólio funerário." (p.361). 
    A obra de Jorge de Oliveira é um exemplo do papel da Arqueologia na construção do conhecimento do devir do Homem. O trabalho deste investigador, nosso professor, representa um esforço de muitos anos, numa área geográfica enorme, de difícil acesso e muitas vezes esquecida. Jorge de Oliveira chega a conclusões muito interessantes e corajosas tendo em conta que o tema da "Violência na Pré-História" é ainda "tabu" na investigação portuguesa. Este investigador identifica dois grupos com diferentes territórios, diferentes aspectos culturais, uma "terra de ninguém" entre eles, uma fronteira marcada por menires e ossos marcados por armas. Muito interessante.

Figura 5 - Mapa retirado de Oliveira (1997, p.135) onde observamos os dois grupos de monumentos, a terra de ninguém e a  fronteira feita de menires.


    No Concelho de Reguengos de Monsaraz e ainda no Neolítico temos uma situação também muito interessante. Visitando o trabalho do casal Leisner podemos observar que existem dois "Grupos" de monumentos megalíticos a Norte e a Sul da Ribeira do Álamo. A Ribeira faz a fronteira entre os dois grupos e funciona também como uma "terra de ninguém". Esta terra de ninguém vai-se alargando para Nordeste a montante da Ribeira. À medida que a Ribeira deixa de ser uma barreira eficaz a terra de ninguém alarga-se. Não conseguimos explicar esta terra de ninguém pelo relevo, pelo tipo de rocha, pelo tipo de solo ou pela localização dos povoados. Estes dois grupos estavam realmente afastados cordialmente ou não. A maior concentração de menires e cromeleques no "Grupo Norte" é precisamente nas suas "fronteiras" a Este e a Oeste. A Este ainda encontramos mais uma zona tampão antes do Guadiana. Aqui os menires parecem estar colocados nas principais vias de passagem. Esta localização repete-se ao longo da História com outros tipos de monumentos. Parece que para lá do Guadiana não vinham bons ventos...

Figura 6 - Mapa retirado de Gonçalves e Sousa(2000, p.16) onde acrescentamos alguns dos menires do trabalho de  Calado (2004). Os pontos pretos são antas, os pontos vermelhos menires e cromeleques. No mapa da esquerda e a vermelho podemos observar como os menires estão localizados nos limites do grupo Norte. A Este estes menires encontram-se no caminho natural de quem atravessa o Rio Guadiana. No mapa da direita as linhas azuis delimitam os dois grupos de monumentos megalíticos. Respetivamente a Norte e a Sul da Ribeira do Álamo. Os círculos azuis delimitam a maior concentração de monumentos dentro dos grupos. Os traços a preto são a possível "terra de ninguém". Esta alarga-se para montante da Ribeira indo dos 2 Km até aos 6 Km. Distâncias curtas mas respeitosas. Seria interessante acrescentar a antiguidade dos monumentos para compreender o movimento da fronteira.


    No trabalho de Manuel Calado  encontramos referências a outros menires, por parte de vários autores, com  a função de marcar diferentes tipos de "fronteiras":
    "Gabriel Pereira, no texto em que fez referência a menir de Vale de Besteiros (nº 39), discorreu genericamente sobre os padrões e marcos delimitadores de territórios, sublinhando que estes se implantavam “antigamente com grande solenidade e formalidades”, “com testemunhas e cerimónias simbólicas” (Pereira, 1880: 254). Trata-se, como veremos, de uma linha interpretativa bastante actual, em que se cruza uma função pragmática com um contexto eminentemente simbólico e ritual. Na década seguinte, tendo em mente, sobretudo, os menires do Algarve, Estácio da Veiga, defendeu igualmente a função de “demarcação de um determinado território”, acrescentando, como alternativa, a possibilidade de que tivessem tido um propósito memorialista “representando um feito memorável ou uma consagração de piedosa lembrança” (Veiga, 1891, IV: 235)." (p.48).
"A vinculação dos menires às questões territoriais tem sido, talvez, uma das opiniões mais consensuais. V. Gonçalves, por exemplo, afirmou que “os menires marcam efectivamente territórios e a sua visibilidade e impacto simbólico são componentes indispensáveis do processo da sua construção” (Gonçalves, 1999: 58)...." (P.50). 
"Em termos paisagísticos, o monumento de Vale Maria do Meio insere-se na fronteira entre paisagens diferentes, em termos topográficos e geológicos...." (p.65).
"Outra situação muito recorrente é a dos menires que se implantam ainda em terrenos graníticos mas junto aos limites da mancha geológica; estão neste caso, por exemplo, o menir de Vale de Besteiros (nº 39), os menires do Carrascal (nº 17) ou os da Cegonheira (nº 20). Esta situação de fronteira, num contexto cultural em que se prestava, certamente, uma atenção especial à geologia, não pode deixar de ser altamente significativa (Taçon, 1999: 41) , tendo sido, igualmente observada num conjunto de menires e “menires” naturais do distrito de Portalegre, implantados em linha, junto ao contacto entre os xistos e os granitos (Oliveira, 1998; Oliveira e Oliveira, 1999-2000)." (p.176).
    A propósito dos "menires naturais" não posso deixar de mencionar a gigantesca Pedra Alçada na nossa Freguesia de Santigo Maior que está numa encruzilhada de vários caminhos.  

Figura 7 - Da esquerda para a direita temos o Menir do Outeiro,  Menir da Belhoa,  Menir do Barrocal e o Cromeleque do Xarez.

    O Homem caçador-recolector do Paleolítico e Mesolítico vivendo em Bandos familiares precisaria de territórios enormes para a sua sobrevivência. Estes teriam certamente as suas fronteiras provavelmente marcadas por acidentes naturais. Os Rios são uma das melhores fronteiras naturais que existem. Sabemos que Portugal e Espanha têm a fronteira mais antiga da Europa. Agora o Rio Guadiana já era uma fronteira antes de Portugal e Espanha sequer existirem. 
    Se nos permitirmos o paralelo com sociedades históricas e contemporâneas, de Bandos e Tribos, compreendemos que a Guerra sempre existiu. Estas sociedades guerreiam entre si em Batalhas Campais rituais, entre grupos vizinhos, mantendo as fronteiras por pura demonstração de força. Outra forma de guerra que encontramos nestas sociedades é a Razia ou "Raid". O Raid surge como forma de roubar recursos ou, na sua forma mais violenta,  como forma de exterminar grupos rivais. Na Pré-História certamente que os territórios e os recursos tinham que ser defendidos. Qualquer grupo que atravesse um problema de falta de recursos será tentado em saquear os do vizinho. A sua sobrevivência disso depende. As constantes alterações climáticas levam também a migrações que são o principal motor da História. Um fenómeno que vivemos nos nossos dias de forma mais acelerada. 
    Com a domesticação da Natureza muda a relação do Homem com o território e a forma de fazer a Guerra. O Neolítico é mais que um período cronológico. O Neolítico representa um conjunto de avanços tecnológicos que permitiram uma explosão demográfica. Os grupos "Neolíticos" ganharam vantagem sobre outros grupos com outras tecnologias. A maior destas vantagens foi o número. O exponencial aumento demográfico levou a novas migrações. Migrações que continuaram até hoje. Na Amazónia os "Fazendeiros" continuam a queimar os territórios dos "Caçadores-Recolectores". Com o Neolítico os territórios passaram a ser mais pequenos mas explorados de uma forma mais intensa. Um esforço de gerações na humanização da paisagem. 
Dois tipos de construções pétreas do Neolítico chegaram até aos nossos dias. As "Antas" que são monumentos funerários onde se enterravam os elementos de uma mesma família. Estes "Templos" parecem querer justificar a posse territorial, como que dizendo "a minha família é sepultada nestas terras há várias gerações". O famoso "a quem pertences" alentejano. 
Os "Menires", isolados ou em grupo, marcam territórios com a sua monumentalidade. E com símbolos como o Báculo que ainda hoje é usado pelo Cristianismo. Simbolizam o domínio do Homem sobre a Natureza. São também um aviso para quem chega que este território já está habitado e por gente de grande capacidade. Através de antas e menires conseguimos identificar diferentes grupos, territórios, fronteiras e......terras de ninguém. A existência de terras de ninguém é uma evidência da existência de guerra.  
    Os povoados sempre foram "fortificados" naturalmente ou com materiais perecíveis. No tempo em que estes povoados eram sazonais o investimento na sua construção seria menor. Torna-se assim muito difícil encontrar evidências arqueológicas. No Neolítico os povoados ganham outra importância e o investimento em fortificar passa a ser maior. Os materiais provavelmente continuaram a ser a madeira e a terra. As evidências arqueológicas chegam-nos na forma de "fossos" em redor dos habitats fortificados. Os buracos de poste também são uma prova do uso de estruturas de madeira. A recente descoberta de um "Woodhenge" no recinto dos Perdigões em Reguengos de Monsaraz é disso testemunho. Por vezes apenas estas "estruturas negativas"  sobrevivem a uma agricultura cada vez mais intensiva. Esta agricultura que continua a destruir o nosso Património enquanto lemos este Post. 

Figura 8 - À esquerda temos o Porto das Carretas (Soares e Tavares da Silva, 2002) e à direita San Blas (Hurtado, 2004). Duas fortificações do Calcolítico na margem esquerda do Rio Guadiana. Muito interessante a localização destes dois espetaculares sítios. 


    As fortificações vão evoluindo a a pedra passa a ser usada como principal elemento. As fortificações do Calcolítico são o resultado de uma lenta evolução na "Arte" de fortificar. O uso da pedra nas fortificações leva uma maior sobrevivência das evidências arqueológicas. Surge a complexidade da estratégia de fortificar. Além da fortificação dos povoados encontramos também Fortes e Torres de Vigia. Com o uso da pedra começamos a ver que a Pré-História era bem mais complicada do que se pensava. 
    Acerca da Proto-História o investigador Fernando Almeida (2017, p.51-76) apresenta a seguinte teoria acerca das fronteiras em fenício:
    "Sabe-se hoje que na nossa região a língua falada pelo povo que foi conquistado e colonizado por Roma era uma língua com origem no leste do Mediterrâneo, fortemente aparentada com o ugarítico, com o hebraico antigo, com o acádio e com o assírio, portanto aquilo a que podemos chamar, fazendo uma generalização facilitadora, Fenício."
"Em algumas línguas antigas do próximo oriente uma das formas de referir o conceito de fronteira faz-se pelo uso da palavra "Miseru". Esse termo fenício evolui entre nós por vezes para o topónimo "Miséria", que ocorre em Portugal em dez locais diferentes, todos no continente, e distribuídos de Norte a Sul do país. De comum a oito desses sítios está o facto de serem ainda hoje locais de divisão administrativa de Concelhos.......Da mesma raiz de "Miseru" existe entre nós de forma muito mais frequente o topónimo "Misericórdia"...
Mas nesta língua havia outros termos que designavam o limite do território. Um deles veio a originar topónimos como "Gabela, Cavalo, Cavaleira; Cavaleiro, Morgavel", etc. Em ugarítico "Gbl" significa o mesmo que "Gbôl" em hebraico antigo: fronteira, limite."

Figura 9 --- 1- Monte da Cavaleira, 2 - Ribeiro da Misericórdia, 3 - Monte da Cavaleira, 4 - Azenha da Misericórdia, 5 - Monte da Gamela, 6 - Monte da Misericórdia, 7 - Monte das Gamelas, 8 - Monte da Misericórdia, 9 - Misericórdia, 10 - Monte da Cavaleira, 11 - Monte da Misericórdia

    
    Na Figura 9 a teoria de Fernando Almeida parece bater certo. Nove dos onze  topónimos que em fenício são relativos a fronteira estão exatamente numa fronteira ou muito perto dela. Do lado direito podemos ver como os topónimos de 2 a 9 batem certo com a fronteira Norte dos Concelhos de Redondo e Alandroal. Isto diz-nos algo em relação à antiguidade dos Concelhos portugueses. Os topónimos 10 e 11 dão continuidade a uma fronteira hoje alterada. Mas se observarmos a fronteira construída por todos os topónimos verificamos que envolve Borba. Que segredos esconde Cidade de Borba? Há quanto tempo são os mármores da nossa região explorados? Muito interessante. Outro pormenor interessante é que os topónimos em A, B e C estão em zonas de passagem naturais. Sítios que não sendo uma fronteira natural têm que ser devidamente "marcados" pela Toponímia. 


Figura 10 - 1 - Misericórdia, 2 - Cavalinho, 3 - Cavalete, 4 - Monte da Cavaleira, 5 - Monte da Cavaleira, 6 - Moinho da Misericórdia, 7 - Monte da Cavaleira, 8 - Pedra do Cavalo, 9 - Miséria, 10 - Ribeiro da Misericórdia

    
    Na Figura 10 mais dados que comprovam as "fronteiras fenícias". Temos vários topónimos relacionados com Misericórdia, Miséria ou Cavalo. Nove em dez  estão exatamente em cima de uma fronteira ou muito perto dela. Se olharmos para a direita vemos como os topónimos seguem as fronteiras dos Concelhos de Montemor-o-Novo, Viana do Alentejo (onde seguem a fronteira da Freguesia das Alcáçovas), Alvito, Portel (onde seguem a fronteira da Freguesia de Monte do Trigo), Reguengos de Monsaraz, Alandroal e Redondo (onde seguem a fronteira da Freguesia de Montoito). Parece que o Concelho de Évora era muito maior na Proto-Hsitória. É muito interessante ver esta "troca" de Freguesias e a "força" desta pequena divisão administrativa. Seria interessante cruzar esta informação com outras fontes para  perceber as flutuações das fronteiras e as vias de comunicação.     
    Como vimos na Proto-História as coisas complicam-se e as fortificações ganham outras funções. Passam a ser também símbolos de poder e formas de controlo da própria população. Umas tornam-se obsoletas e são abandonadas, outras destruídas em ataques ou por fenómenos naturais. 
    Em passo acelerado chegam à Península Ibérica Romanos, Germânicos e Norte Africanos que vão destruindo e reconstruindo fortificações. Chegamos finalmente à Idade Média onde voltamos a dar com uma terra de ninguém desta vez criada pelos terríveis portugueses. Na margem esquerda do Guadiana, entre Olivença e Mourão, encontramos pelo menos quatro Castelos medievais arrasados pelos portugueses. Uma estratégia de terra queimada com vista à criação de uma terra de ninguém.


Figura 11


    Na Figura 11 temos o mapa da nossa região por alturas da Idade Média quando Olivenza ainda era Olivença. Do lado português observamos uma "profundidade" de 15 Km. Deixamos de fora vários povoados e fortificações dos quais destacamos Vila Viçosa.  Podemos então ver do lado português as aldeias (30) em tons de azul. Sempre tendo em conta que algumas destas aldeias não existiam na Idade Média. Por outro lado duas povoações portuguesas podem ter desaparecido desde então. Vila Velha no Concelho de Mourão e a primeira Ferreira  no Concelho de Alandroal. Ainda do lado português temos as Fortificações a Vermelho: Mourão, Monsaraz, Terena, Alandroal, Juromenha e Olivença. A preto temos Fortes (2), Torres (2), Ermidas fortificadas (2) e Atalaias ou Torres de Vigia (33). Nestes elementos fortificados fomos até uma profundidade maior embora faltem monumentos nos Concelhos de Alandroal, Elvas e Vila Viçosa. Do lado espanhol apresentamos Cuncos, Villanueva del Fresno, os dois momentos de Cheles e Alconchel. Das fortificações apenas o Castelo de Alconchel sobreviveu. Peço desculpa por não conhecer a realidade espanhola como a portuguesa no que toca a outro tipo de fortificações. Decerto teremos Torres e Atalaias ainda de pé do lado espanhol. Conhecemos pelo menos uma em Cheles. No entanto o  contraste entre os dois lados da fronteira é grande.  

Figura 12

 
    Na Figura 12 apresentamos a ruina do Castelo de Villanueva del Fresno vítima da política de terra queimada por parte de Portugal. O castelo foi construído no século XIV. Apresenta uma planta e método de construção muito interessante parecendo mais antigo. No século XVII um exército sob o comando de Matias de Alburquerque conquistou o Castelo. Nos anos seguintes tanto a Fortificação como a Vila foram destruídos. Uma nota sobre as constantes agressões dos terríveis portugueses retirada de um documento do Município:
    "En 1336 el Rey de Portugal Alfonso IV puso cerco a Badajoz, pero deshecha la avanzada hubo de levantar sus reales y en su retirada entre otras represalias “derribó a Villanueva del Fresno”. En la Guerra de la Independencia Portuguesa, las tropas de Mathias de Alburquerque se presentan el 8 de octubre de 1643 ante las puertas de la villa y tras 10 días de asedio, la guarnición de D. Francisco Geldres, se rinde el 18 de octubre de 1643. Al perder interés para Portugal, fue abandonada, minada y volada en 1646."

Figura 13 - Planta retirada de Valdés e Diaz (2002, p.213)


    Na Figura 13 temos o Castelo de Cuncos com Monsaraz ao fundo. Um Castelo do Islão e provavelmente uma Rábita como nos aponta a toponímia. São aliás vários os topónimos referentes ao Castelo de Cuncos: Dehesa de Rabito, Plaza del Castillo e La Muralla. Os monges guerreiros parecem ter perdido o Castelo para outros monges guerreiros, os cavaleiros templários no século XIII. Eventualmente nesse mesmo século o Castelo foi derrubado. Parece que estava do lado errado do Rio, muito perto de Monsaraz e Mourão. Hoje encontra-se parcialmente submerso pelas águas do Grande Lago. No entanto o sítio é espetacular, podíamos ter parte das estruturas e da necrópole à mostra. Seria um destacado ponto de interesse nas margens de Alqueva que podia ser visitado de barco.



Figura 14

 
    Na Figura 14 apresentamos o primeiro Castelo de Cheles que fica acima povoado Calcolítico de San Blas. O povo de Cheles habita a região há mais de 4000 anos. Em (1) temos o Rio Guadiana também Grande Lago de Alqueva. Em (2) uma proposta para as muralhas do Castelo medieval. No terreno ainda é perceptível a localização das muralhas. Em (3) ainda encontramos as fundações de uma Torre provavelmente a Torre de Menagem. Em (4) temos a ainda em pé a Ermida De Los Martires. Em (5) mais uma Ermida em ruínas da qual desconhecemos o nome. Em (6) a Ermida de San Goldrofe rodeada por uma vasta necrópole. Em (7) a famosa praia de Cheles que apanha a necrópole do povoado Calcolítico de San Blas. Neste cabeço temos um imenso povoado fortificado do Calcolitico, vestígios da Idade do Ferro, romanos, visigodos e islâmicos, ruínas do Castelo Medieval e três Ermidas. Que espectacular continuidade. No seculo XVI o primeiro Castelo de Cheles é abandonado e a povoação muda-se 4 Km para SE onde constroem uma nova fortificação. No século XVII os terríveis portugueses atacam e arrasam Cheles. No entanto os irredutíveis Cheleiros voltam e ainda lá estão.


Figura 15 - Ruínas dentro da muralhas do primeiro Castelo de Cheles. Do lado esquerdo uma provável Ermida da qual desconhecemos o nome. Do lado direito as fundações de uma imensa torre que bem podia ser a torre de menagem.




Figura 16 - Ermida De Los Mártires à esquerda ainda dentro das muralhas do primeiro Castelo de Cheles. Ermida de San Goldrofe mais perto do Rio Guadiana provavelmente no caminho para a Barca. 

 
      
Figura 17 - Ataque dos terríveis portugueses à segunda localização de Cheles no século XVII.


Figura 18


    Na Figura 18 temos o Castelo de Miraflores em Alconchel de ampla diacronia. Esta é a única fortificação de envergadura que sobreviveu à política de terra queimada e respetiva terra de ninguém imposta pelos portugueses. Está a 18 Km de Cheles.



Figura 19



    Na Figura 19 vemos a terra de ninguém, a zona sombreada,  criada pelos terríveis portugueses na Idade Média. Uma zona tampão entre as fortificações portuguesas de Olivença, Juromenha, Alandroal, Terena, Monsaraz, Mourão e a fortificação espanhola de Alconchel. São quase 900 Km quadrados onde a única povoação espanhola é a dos irredutíveis Cheleiros.


Figura 20

    Na Figura 20 observamos como Mourão e Olivença funcionam como testas de ponte na margem esquerda do Rio Guadiana. Estas fortificações protegem as passagens naturais do Rio Guadiana. Vias de acesso para o Alentejo e para a Capital. Mourão, Olivença e Monsaraz encontram-se bem reforçadas por um sistema de Torres de Vigia e outras fortificações nas duas margens do Guadiana. Destacamos Juromenha a sentinela do Guadiana. A tracejado observamos a zona onde o Rio Guadiana faz a fronteira. A via de acesso mais fácil desta zona é a Ribeira de Lucefécit. Esta também está protegida por Torres de Vigia e por Terena. As setas representam a zona mais propícias à passagem de grupos de cavaleiros nas suas "Razias". Pode esta ser um adas razões da sobrevivência de Cheles na localização que tem hoje.
    Apresentámos algumas provas da existência de uma "terra de ninguém" na nossa região. Esta é reflexo de um estado de guerra constante na Idade Média. Sendo também uma estratégia de Guerra Defensiva. Tendo em conta o trabalho de Jorge de Oliveira no Norte Alentejano. E cruzando esta informação com os dados da nossa região. Levantamos a hipótese da existência de "terras de ninguém" desde a Pré-História. Sendo estas reflexo de conflitos milenares. Estes conflitos defendiam territórios e os seus recursos. Territórios marcados por fronteiras naturais como o Rio Guadiana. Territórios dos quais os Concelhos e Freguesias de hoje são herdeiros. Que espectacular continuidade.
    Esperamos ter provado também que os portugueses são terriveis e os Cheleiros irredutiveis. De Torres de Vigia e Razias falaremos no próximo post sobre  a guerra na Raia Alentejana. Sigam o blogue.


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Bibliografia


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